Uma Síntese da Psicologia Junguiana
A teoria junguiana compreende a psique como um sistema de energias, dinâmico, em permanente movimento. O autor afirmou a realidade da psique como sua hipótese de trabalho, postulando que tudo o que é experimentado, até mesmo a dor física, é, em última instância, fato psíquico, pois, mesmo a conscientização da experiência sensória se dá por intermédio de imagens psíquicas.
Neste sentido, o âmbito de atuação do psíquico vai desde as profundas raízes do inconsciente até sua expressão dentro e sobre o mundo externo. Avaliando o conceito de psique junguiano, Clarke (1992), afirma:
“A psique, então, é um ator no palco do mundo, não uma reclusa confinada a algum reino espiritual próprio, isolado de tudo. Além do mais, ela só opera dentro e através do mundo da natureza, é em si um fenômeno natural, ‘um organismo psíquico vivo’, com características de vida e crescimento análogas às do mundo orgânico”.
Jung vai compreender a psique compondo-se de materiais psicológicos divididos em conteúdos conscientes e inconscientes.
Os conteúdos conscientes podem ser pessoais constituindo a persona consciente, germe da individualidade ainda não desenvolvida, espécie de estereótipo gerado a partir de valores coletivos, funcionando como sistema de adaptação e comunicação com o mundo. A persona, como indica o nome, é a aparência de uma individualidade, uma máscara que define um personagem pelo qual fala a psique coletiva. Segundo Jung (1987):
“… Ela representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, acerca daquilo que ‘alguém parece ser’: nome, título, ocupação, isto ou aquilo. De certo modo, tais dados são reais; mas, em relação à individualidade essencial da pessoa, representam algo de secundário…”
A psique consciente possui um centro denominado Ego, o elemento psíquico que torna possível a noção de individualidade, ao mesmo tempo em que é o canal para a conscientização das experiências vividas pela pessoa. Em outras palavras, o Ego intermedia, enquanto consciência individual, as relações entre o mundo externo e o inconsciente.
Os conteúdos conscientes impessoais dizem respeito aos valores coletivos reconhecidos socialmente.
Os conteúdos inconscientes pessoais correspondem a todo material reprimido pela consciência devido ao fato, por exemplo, deste não corresponder ao que é valorizado no nível pessoal ou social. Faz parte do inconsciente pessoal todo material psíquico reprimido, lembranças esquecidas, percepções subliminares e conteúdos ainda não amadurecidos para a consciência. Estes materiais psíquicos compõem o que Jung aponta enquanto figura da sombra, componente psíquico antagonista e complementar à figura da persona.
Os conteúdos inconscientes impessoais dizem respeito à parte inconsciente da psique coletiva, o inconsciente coletivo, cujos conteúdos são universais, formando uma base da psique em si mesma, idêntica a si própria em toda parte.
O inconsciente coletivo corresponde às camadas mais profundas do inconsciente, aos fundamentos estruturais da psique humana e é, portanto, definido como matriz de todas as ocorrências psíquicas. Para Jung, a mente é estruturada por fatores herdados dos primórdios mais remotos da existência, que determinam a forma geral e as fronteiras da vida consciente. Segundo o autor (1985):
“A psique inconsciente é formada por instintos, funções e formas herdadas, já pertencentes a psique ancestral. Essa herança coletiva não consiste em noções herdadas, mas na possibilidade de semelhantes noções – em outras palavras, em categorias ‘a priori’ de tipos de funções possíveis. Essa herança pode ser chamada de instinto, no sentido original da palavra”
Estas “funções possíveis” correspondem às imagens primordiais ou arquétipos; definidos, em outra obra do autor (1987), como a aptidão hereditária da imaginação humana de ser como era nos primórdios. O autor aponta que hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens. Em linhas gerais, a teoria junguiana afirma que, em sua origem, os arquétipos resultariam do depósito das impressões superpostas deixadas pelas vivências fundamentais dos seres humanos, ao longo do tempo. Os arquétipos seriam sedimentos de experiências constantemente revividas pela humanidade, e, em suas bases, estaria fisiologicamente associado à estrutura do sistema nervoso e às matrizes genéticas humanas.
Arquétipos, portanto, são estruturas psíquicas herdadas correspondentes aos instintos, elementos puramente formais, formas de representação dadas “a priori”, vazias de conteúdo. O arquétipo é, em si, uma potencialidade de manifestação da energia instintiva; ele é virtual, só se manifestando enquanto imagem arquetípica quando, através da consciência, seu conteúdo é preenchido pelo material da experiência consciente.
Os conteúdos que permitem a formação das imagens arquetípicas são dados a partir da realidade sociocultural. Jung insiste que a maneira como os temas arquetípicos universais se manifestam depende intrinsecamente do contexto cultural próprio no qual estes aparecem. Existem tantos arquétipos quantas são as situações típicas da vida. São exemplos de arquétipos fundamentais a sombra, anima/animus, grande-mãe, Si-mesmo ou Self, o pai…
A Anima e o Animus são dois arquétipos muito importantes e exaustivamente trabalhados conceitualmente pela Psicologia Analítica. A Anima é o feminino inconsciente do homem, enquanto que o Animus é o masculino inconsciente da mulher. Os arquétipos da Grande Mãe e do Pai são encarados como fundamentais.
Essas forças arquetípicas se manifestam através de sonhos, mitos e contos, enquanto imagens arquetípicas ou símbolos. Vale salientar que, para Jung, imagem arquetípica símbolo são conceitos coincidentes. O símbolo é uma linguagem universal infinitamente rica, capaz de expressar através de imagens, muitas coisas que transcendem a problemática específica do indivíduo. É a unidade fundamental do funcionamento da psique, integrando as realidades interna e externa e se originando do embate dos arquétipos do inconsciente coletivo com a vida cotidiana.
Outro conceito essencial para a compreensão da teoria junguiana é o de complexo. Sinteticamente, os complexos são agrupamentos de conteúdos psíquicos carregados de afeto em torno de um núcleo arquetípico. Ao fim do desenvolvimento de sua teoria dos complexos, Jung considerou que os complexos poderiam exercer, sobre o Ego, tanto uma pressão negativa quanto uma força positiva.
Avaliando o desenvolvimento da teoria dos complexos na Psicologia de Jung, Jacobi (1991) aponta que estes complexos fazem parte da estrutura básica da psique, são as representações dos fenômenos característicos da vida psíquica, são constituintes estruturais e, por isso, componentes sadios da psique. O próprio Ego também é chamado de complexo do “eu”, um complexo central na consciência, um entre vários complexos. É na associação com o complexo do “eu” ou Ego, que outros complexos se tornam conscientes e suas energias são integradas no desenvolvimento da individualidade.
Conscientizado, o complexo expõe seu núcleo arquetípico, que se despoja do revestimento mitológico para interagir dialeticamente com a consciência, tornando possível uma redistribuição da energia psíquica. A energia que emerge do inconsciente na forma de complexo, representa uma força, um poder, que momentaneamente abala a estabilidade psíquica. Essa energia do núcleo arquetípico é por definição bipolar, assim como todo arquétipo, complexo ou símbolo. Quando integrada pela consciência pode produzir uma situação nova e mais útil ao equilíbrio psicológico. Em sua potencialidade, a energia arquetípica e suas manifestações simbólicas são inesgotáveis e a conscientização ou “assimilação” do complexo não significa o desaparecimento do potencial arquetípico, mas sim o despojamento dos conteúdos psíquicos pessoais agrupados ao redor do núcleo arquetípico do complexo.
Quando não integrados pela consciência, os complexos adquirem autonomia. Separados da consciência, ou seja, não integrados ao Ego, os complexos comportam-se como “entidades autônomas” que sub-repticiamente assaltam a consciência e competem energeticamente com o Ego, formando a base para estados psíquicos conflitivos ou patológicos.
A autonomia do complexo e seus efeitos sobre a psique, quer sejam atos falhos, neuroses, psicoses, identificações ou projeções, são idéias fundamentais que formam as bases do modelo terapêutico junguiano. Como esclarece Silveira (1981), tanto no modelo psicoterapêutico como no processo natural de desenvolvimento psíquico, todos os fenômenos psíquicos são de natureza energética (libidinais, instintivas). Os complexos são nós de energia, os arquétipos são os núcleos energéticos e os símbolos são as “máquinas” transformadoras de energia no processo integrativo psíquico denominado de individuação.
Neste processo a psique é concebida como um sistema autorregulador que procura o equilíbrio entre várias tendências opostas. Esta busca de equilíbrio constitui uma tendência natural do organismo psíquico. O psiquismo é, portanto, caracterizado como um sistema dinâmico de equilíbrio entre opostos: consciente/inconsciente, unidade/pluralidade, masculino/feminino… A integração dinâmica destes princípios opostos não significa a formação de uma unidade indiferenciada, mas sim de uma individualidade que é, por sua vez, a expressão de uma totalidade individual – uma combinação única de elementos universais em estado de equilíbrio dinâmico. A individuação é concebida como um processo natural, que pode ser apoiado ou prejudicado, em função da qualidade de relações estabelecidas com o ambiente. Este processo pode ser apoiado pela terapia.
O processo de individuação ocupa toda a vida, que é conceitualmente dividida, por Jung, em quatro períodos: infância-puberdade, onde o indivíduo é basicamente regido por instintos e inicia o fortalecimento do Ego a partir da construção da persona; puberdade-meia-idade, onde o indivíduo firma sua autonomia e se engaja socialmente (o Ego separa-se do inconsciente); meia-idade-velhice, onde o indivíduo busca uma adaptação ao mundo interior, voltando-se para o inconsciente; velhice-fim-da-vida, onde o indivíduo prepara-se para a meta final da morte.
A individuação pode ser traduzida como “tornar-se Si-mesmo”, significando uma realização individual melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano. A instância diretora do processo de individuação é o arquétipo central da psique, o arquétipo da totalidade: Self ou Si-mesmo.
Jung (1994) afirma:
“O Si-mesmo é o centro e também a circunferência completa que compreende ao mesmo tempo o consciente e o inconsciente: é o centro desta totalidade como o Eu é o centro da consciência”.
Este centro da psique total comanda e ordena todo o processo de individuação: o nascimento do Ego, a organização e assimilação das forças arquetípicas e a formação de um eixo simbólico de interação Ego-Si-mesmo, que torna o ser individuado.
Sobre a relação Ego-Si-mesmo, Jung (1988) afirma:
“Visto que o homem só se percebe a si próprio como um Ego, e o Si-mesmo como totalidade é algo indescritível, não se distinguindo de uma imagem de Deus, a autorrealização não é outra coisa em linguagem metafísica e religiosa do que a encarnação divina”.
Jung postula a realidade psíquica da divindade; a imagem de Deus é a representação psicológica da instância central e organizadora do psiquismo (1986):
“Deus é uma realidade psíquica evidente, e não um dado físico, ou seja, é um dado que só pode ser constatado do ponto de vista psíquico, e não do ponto de vista físico”.
O Si-mesmo apresenta uma fenomenologia característica, expressando-se por meio de imagens simbólicas típicas denominadas mandalas. Mandalas são imagens que enfatizam um círculo com um centro, somados à figura geométrica do quadrado, da cruz ou outro elemento quaternário. Exemplificando de uma forma bastante esquemática:
Em seus trabalhos, Jung (1995, 1988) focaliza e desenvolve a noção de mandala e das figuras quaternárias enquanto representações simbólicas do Si-mesmo.
Tornar-se individuado é, na perspectiva junguiana, tornar-se Si-mesmo, ou seja, como nos aponta o símbolo quaternário, é tornar-se uma totalidade formada pela tensão integrativa e criativa de forças contraditórias.
Jung (1988), no livro “Interpretação psicológica do dogma da trindade”, aponta a incompletude do arquétipo trinitário, presente no dogma cristão da santíssima trindade. A trindade possui caráter exclusivamente masculino, além de alienar o lado sombrio da realidade; as três pessoas divinas são totalmente boas e perfeitas.
A crítica tecida por Jung indica a necessidade da inclusão do feminino e do aspecto sombrio da realidade no símbolo cristão trinitário. Isto permitiria a formação do símbolo quaternário, possibilitando uma real expressão de totalidade deste símbolo religioso.
A religiosidade é entendida, pelo autor, como uma função natural da psique. Religiosidade enquanto busca de religação, reconexão entre Ego e Si-mesmo.
Este impulso religioso está presente na dinâmica da individuação, na vida simbólica do indivíduo, manifestando-se através de qualquer conjunto de símbolos, sejam nos sonhos, nos mitos, nas artes, nas ciências ou nas religiões.
Como aponta Mantovani (1994), em sua abordagem junguiana do fenômeno religioso, a vivência dos símbolos religiosos se mostra como uma possibilidade de ampliação da consciência e contato com o inconsciente, neste sentido, a religião enquanto conjunto de símbolos religiosos serve à finalidade do impulso religioso, proporcionando a individuação. A autora afirma:
“Assim, a problemática ligada à religião será o quanto seus símbolos serão tratados de forma criativa pelo Ego, facilitando a aproximação com o Self ou de forma defensiva, afastando-o de sua raiz arquetípica”.
Neste sentido, a religião é entendida como um conjunto de símbolos que podem promover a individuação.
Clarke, J. J. “Em busca de Jung, indagações históricas e filosóficas”, p. 138.
Jung. C. G. “O Eu e o Inconsciente”, p. 32.
Jung, C. G. “A prática da psicoterapia”, p. 32.
Jung, C. G. “Psicologia e alquimia”, p. 29.
Jung, C. G. “Interpretação psicológica do dogma da trindade”, p. 44.
Jung, C. G. “Resposta a Jó”, p. 106.
Mantovani, M. V. “religião: criatividade ou defesa da psique”, p. 22.