Uma Reflexão Sobre o Conceito de Individuação Junguiana, Iniciação e Vida Religiosa no Candomblé de São Paulo

Uma Reflexão Sobre o Conceito de Individuação Junguiana, Iniciação e Vida Religiosa no Candomblé de São Paulo

O processo de Individuação ocupa toda a vida, que é conceitualmente dividida, por Jung, em quatro períodos: infância-puberdade, onde o indivíduo é basicamente regido por instintos e inicia o fortalecimento do Ego a partir da construção da Persona; puberdade-meia-idade, onde o indivíduo firma sua autonomia e se engaja socialmente (o Ego separa-se do inconsciente); meia-idade-velhice, onde o indivíduo busca uma adaptação ao mundo interior, voltando-se para o inconsciente; velhice-fim-da-vida, onde o indivíduo prepara-se para a meta final da morte.

A Individuação pode ser traduzida como “tornar-se Si-mesmo”, significando uma realização individual melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano. A instância diretora do processo de Individuação é o arquétipo central da psique, o arquétipo da totalidade: Self ou Si-mesmo. Este centro da psique total comanda e ordena todo o processo de individuação: o nascimento do Ego, a organização e assimilação das forças arquetípicas e a formação de um eixo simbólico de interação Ego-Si-mesmo, que torna o ser individuado.

Sobre a relação Ego-Si-mesmo, Jung (1988) afirma:

“Visto que o homem só se percebe a si próprio como um Ego, e o Si-mesmo como totalidade é algo indescritível, não se distinguindo de uma imagem de Deus, a autorrealização não é outra coisa em linguagem metafísica e religiosa do que a encarnação divina”. 

Jung postula a realidade psíquica da divindade; a imagem de Deus é a representação psicológica da instância central e organizadora do psiquismo (1986):

“Deus é uma realidade psíquica evidente, e não um dado físico, ou seja, é um dado que só pode ser constatado do ponto de vista psíquico, e não do ponto de vista físico”.

O Si-mesmo apresenta uma fenomenologia característica, expressando-se por meio de imagens simbólicas típicas denominadas mandalas. Mandalas são imagens que enfatizam um círculo com um centro, somados à figura geométrica do quadrado, da cruz ou outro elemento quaternário. Exemplificando de uma forma bastante esquemática:

 

Em seus trabalhos, Jung (1995, 1988) focaliza e desenvolve a noção de mandala e das figuras quaternárias enquanto representações simbólicas do Si-mesmo. Tornar-se individuado é, na perspectiva junguiana, tornar-se Si-mesmo, ou seja, como nos aponta o símbolo quaternário, é tornar-se uma totalidade formada pela tensão integrativa e criativa de forças contraditórias.

Jung (1988), no livro “Interpretação psicológica do dogma da trindade”, aponta a incompletude do arquétipo trinitário, presente no dogma cristão da santíssima trindade. A trindade possui caráter exclusivamente masculino, além de alienar o lado sombrio da realidade; as três pessoas divinas são totalmente boas e perfeitas. A crítica tecida por Jung indica a necessidade da inclusão do feminino e do aspecto sombrio da realidade no símbolo cristão trinitário. Isto permitiria a formação do símbolo quaternário, possibilitando uma real expressão de totalidade deste símbolo religioso.

A religiosidade é entendida, pelo autor, como uma função natural da psique. Religiosidade enquanto busca de religação, reconexão entre Ego e Si-mesmo. Este impulso religioso está presente na dinâmica da individuação, na vida simbólica do indivíduo, manifestando-se através de qualquer conjunto de símbolos, sejam nos sonhos, nos mitos, nas artes, nas ciências ou nas religiões.

Como aponta Mantovani (1994), em sua abordagem junguiana do fenômeno religioso, a vivência dos símbolos religiosos se mostra como uma possibilidade de ampliação da consciência e contato com o inconsciente, neste sentido, a religião enquanto conjunto de símbolos religiosos serve à finalidade do impulso religioso, proporcionando a individuação. Neste sentido, a religião é entendida como um conjunto de símbolos que podem promover a individuação.

Retomando a temática do candomblé, iremos agora estabelecer paralelos entre seus símbolos e a concepção junguiana de Individuação, não no sentido de “encaixar” os sistemas, mas sim, na busca de um diálogo que procurará entender como o Candomblé articula seus símbolos religiosos e como esta articulação se relaciona com a teoria junguiana.

Como apontamos anteriormente, para o Candomblé a existência se dá em duas instâncias: Orum e Aiyê – mundo sobrenatural e natural. Do Orum provém as matérias primordiais e matérias ancestrais que compõem os seres naturais. Uma intensa dinâmica de forças se dá entre os espaços do Orum e Aiyê. Exú, princípio do dinamismo, é a entidade que representa o potencial de crescimento e diferenciação. Ele multiplica e individualiza. O elemento central do processo de individualização é o Ori, cuja matriz no Orum permite a individualidade do Ser no Aiyê. Ori define o destino e os orixás do sujeito. Os Orixás gerais são forças genéricas, matérias primordiais que compõe o Ori e se manifestam no indivíduo enquanto orixás pessoais. Ao longo da carreira iniciática vai se formando o carrego-de-santo do indivíduo, sua sequência própria de Orixás, compondo-se assim uma pessoa plural, em equilíbrio dinâmico com as forças dos Orixás.

Como também acabamos de ver, na Psicologia Analítica a existência é um fato psíquico. A psique é composta por uma parte inconsciente e uma consciente. No inconsciente coletivo estão as matrizes da experiência de vida humana, potenciais de representação das características do ser humano: os arquétipos. O centro e totalidade da psique é o Si-mesmo, que prefigura um Ego como centro da consciência. Este Ego relaciona-se com os complexos, cujos núcleos são arquétipos, e ao integrá-los, conscientemente se expande e se diferencia, num processo dirigido e coordenado pelo Si-mesmo. Este processo de integrações simbólicas e desenvolvimento psíquico recebe o nome de individuação. A finalidade da individuação, além do estabelecimento de um eixo criativo entre Ego e Si-mesmo (centro da consciência e centro e totalidade da psique), é a concretização de um Ser total, um complexo de oposições em equilíbrio dinâmico, um Ser integrado em sua multiplicidade.

Podemos perceber, nesta exposição sintética, que ambos os sistemas (o candomblé e a Psicologia Analítica) encaram a existência acontecendo em dois níveis de realidade. Estes níveis estão em troca dinâmica de energia.

De um dos níveis (inconsciente coletivo – Orum) provém forças que prefiguram a vida humana. Neste sentido podemos estabelecer um paralelo simbólico entre o conceito de orixá geral e arquétipo. O Ori-Orum (como representado no Igbá-Ori) enquanto símbolo quaternário é um princípio central, organizador e individualizante. Podemos perceber, na noção de Ori, elementos simbólicos que muito se assemelham ao simbolismo e conceito de Self.

Nesta mesma linha de raciocínio, podemos entender os Orixás pessoais como manifestação de forças arquetípicas personificadas, como entendido por Jung. Para ambos os sistemas o Ser é plural e em ambos os sistemas a diferenciação do processo individual depende da consciência, do equilíbrio entre as forças que formam o Ser.

Segato (1995), trabalhando com o Xangô recifense, propôs, também, um diálogo intercultural entre concepções próprias do mundo afro-brasileiro e o corpo teórico da Psicologia Analítica. A autora aponta concepções comuns a ambos os campos conceituais: a noção de pessoa múltipla, o vínculo existente entre a alma individual – o eu e uma entidade espiritual – a alma, a ubiquidade do eu, a concepção de que os arquétipos essenciais são reeditados em imagens e por último, a concepção do psiquismo enquanto espelho do cosmo.

Além das aproximações, a autora aponta como distanciamentos conceituais as formas como se dão as relações entre o Self junguiano e o eu e as formas como se dão as relações do Orixá com o eu:

“Acontece que, como já disse, o santo não representa exatamente a totalidade do inconsciente mas é, para usar os termos junguianos, uma entre muitas de suas scintillae animadas, dotadas de vida própria, que passa a liderar essa totalidade e imprimir no psiquismo o seu perfil, a sua estampa particular. Noutras palavras:  uma parte que conduz o todo, organizando os seus conteúdos à sua imagem e semelhança. 

De fato, os dois sistemas afastam-se de maneira irreversível se percebermos a distância que se instala entre a matriz politeísta dentro da qual a relação eu-santo ocorre e a matriz monoteísta em que, na linguagem junguiana, a relação eu-Self é descrita”.

Embora concordemos com as aproximações feitas pela autora, não concordamos com os distanciamentos por ela apontados. De fato, não nos parece possível entender a relação Orixá pessoal-eu como um correlato da que ocorre entre Self-Ego. Como já foi colocado, percebemos a relação Orixá-pessoa correlacionada simbolicamente com a que se dá entre forças arquetípicas personificadas e o Ego.

Por outro lado, ao contrário da autora, que não localiza nenhum símbolo de totalidade, nem símbolo central organizador do indivíduo nos Xangôs de Recife, localizamos nos Candomblés de São Paulo o culto do Ori, simbolizado de forma eloquentemente significativa enquanto símbolo quaternário, organizador e superposto ao indivíduo e ao Orixá. Mais propriamente, apontamos que o eixo Ego-self se mostraria no candomblé na relação estabelecida entre o sujeito e o Ori.

O Self, embora seja concebido como totalidade, em hipótese alguma é uma unidade indiferenciada, ele é um complexo de oposições em
equilíbrio dinâmico. Podemos perceber a presença deste mesmo conceito no Candomblé, quando observamos que no ritual de saudação ao Ori são louvados os quatro cantos da cabeça. Portanto, o Ori reafirma-se como uma totalidade composta por quatro elementos: futuro, passado, masculino e feminino (à frente, atrás, lado direito e lado esquerdo).

O Candomblé, na realidade, não se mostra como um corpo teológico único. Dependendo da localidade, ele pode apresentar diferenças rituais e conceituais. Dentro da mesma cidade e em candomblés de mesma nação também haverá diferenças, diferenças rituais e de interação social em virtude da personalidade do Babalorixá ou Yalorixá e da própria comunidade. Estas especificidades que diferenciam os grupos de uma mesma matriz, compõe e determinam a forma como se dá o fenômeno social, é a passagem da esfera do ideal para o material. Focando-se especificamente no Candomblé paulistano de matriz Keto, este artigo permitiu a observação de paralelos conceituais entre elementos teóricos da Psicologia de Jung e concepções teológicas do Candomblé.

 

Jung, C. G. “Interpretação psicológica do dogma da trindade”, p. 44.

Jung, C. G. “Resposta a Jó”, p. 106.

Segato, R. L. “Santos e daimones”, p. 329.

 

 

 

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